quinta-feira, 6 de março de 2008

Carta não enviada a um amor platônico



Meu amor, teus olhos longínquos despertam em mim
Imagens de paisagens exuberantes
Que desejaria como refúgio para nosso amor.
Olhos castanhos que refletem castelos mouriscos
Nos quais me perco por labirintos de me encontrar.
Os castelos estão num vale coberto de flores de colorido diverso.
Um rio de águas cristalinas corre mansamente em direção ao mar distante e
Reflete o quase inexistente azul do céu e o colorido das flores
Que contrastam com o verde frondoso das poucas árvores majestosas
E de existência secular.

Meu amor, estás sempre com o olhar distante, fechada em teu mundo. . .
Se sorrisses para mim, sentir-me-ia possuído por uma emoção ímpar,
Diante de uma paisagem com cachoeiras que cantam uma sinfonia
De murmúrios em parceria com o cântico dos pássaros.
E eu, criança maravilhada, deixar-me-ia levar pela mão
Por essa paisagem encantada . . .
Se sorrisses, algo mágico sucederia: fogos-de-artifício desmanchando-se
Em cascatas de risos na noite enluarada, orgias desmanteladas
regadas a vinho . . .

Meu amor, tua pele clara exala o perfume dos lírios
Que enfeitam os jardins japoneses e tornam agosto cheio de sutilezas.
Olho-te e descortina-se diante de mim a simetria quase-perfeita
De uma cidade marroquina com suas casas brancas,
Despertando para a ardência de um dia de sol intenso.

Meu amor, és linda e enigmática como o mês de agosto:
Tens os mistérios e os encantos dos dias ensolarados,
A suavidade da brisa que sopra soberana pelas praias de areias brancas
E toca de leve as folhas das palmeiras
Que embalam meu sonho de ter-te em meus braços.

Sonho-te desnuda, oh meu amor, à beira-mar, sob a luz do luar.
Como és bela!
Sinto teu cheiro: sou o erotismo que desperta tua libido;
Sou a essência molecular do cio que percorre teu corpo
Em avalanches metamorfoseantes
Que desencadeiam a ativação de todos os sentidos;
Sou o desejo em crescente efervescência que corre por tuas veias
Como lavas de um vulcão em contínua erupção;
Sou o cheiro embriagador de tua genitália que a brisa marinha traz
E que sibila, serpenteia, ondeia em espirais na busca cega e desenfreada de gozo.

Meu desejo por ti é ardente como a fome de um leão
Diante da visão de uma gazela alheia ao perigo.
Meu desejo por ti possui a beleza devastadora do mar em fúria,
Avançando contra os rochedos com uma força intrigante e avassaladora.
Meu desejo por ti alberga a velocidade desordenada e destruidora dos ciclones
Que devastam as praias orladas de coqueiros.
Meu desejo por ti é uma antologia pornográfica,
Colhida em todas as revistas e filmes, numa seqüência interminável de imagens,
Que se chocam de cara contra teu puritanismo de donzela recatada.

Vejo-te.
Sou a serenidade e a suavidade de uma pacata aldeia cravada entre montanhas.
Sou um dia outonal numa cidade mourisca,
Sou as folhas rubras arrastadas pela brisa,
Sou o desnudamento colorido de todas as árvores
Que se preparam para enfrentar o inverno.
Sou o dolente ocaso , visto de uma colina majestosa,
Que tem a seus pés a imensidão de um vale florido.
Sou a nuvem passageira que se desfaz em chuva-abraço-envolvente em teu corpo quente.
Sou o torpor-cortina-de-sono que fecha teus olhos.
Sou as imagens oníricas que colorem teu adormecer.

Meu amor, oh meu grande bem, teu olhar distante são saveiros
Que aguardam a hora de partir à beira de um cais desértico;
São naus que singram para o destino-solidão;
São navios-silhuetas-embaçadas diante de marejados-olhos-saudades.
Do cais, vejo-os partirem, vejo-os saindo da barra,
Vejo-os-os entrando em mar aberto,
Vejo-os sumirem na distância: minúsculos pontos,
Vejo-os fumo na imensidão . . .
Meus olhos estão marejados,
Meu coração soluça lágrimas amargas . . .

Oliveira

domingo, 2 de março de 2008

Meu coração



Meu coração cais sem embarcações;
navio encalhado ao largo;
âncora esquecida no fundo do mar;
barco velho de quilha virada numa praia deserta.
Meu coração escombros de um império ignoto;
salão suntuoso que guarda a memória pomposa
de um tempo que ruiu;
cárcere irremediavelmente fechado -
o carcereiro atirou a chave ao mar.
Meu coração aldeia saqueada por bárbaros;
cidade arrasada pela fúria cega da natureza;
beco escuro onde se cometem atos torpes;
cacimba vazia em leito de rio seco.
Meu coração gaveta por arrumar;
baú empoeirado no sótão da quinta;
rosa murcha guardada num livro de poesias;
folhas-mortas nas alamedas do esquecimento;
porão de escombros do castelo de areia que desmoronou.
Meu coração pórtico partido para o infinito;
ponte que liga o nada a coisa nenhuma;
cortina de bruma no horizonte incerto da felicidade;
livro do desassossego esquecido num banco de praça;
taça de cristal espatifada no chão da lógica;
mala esquecida no bagageiro do trem da alegria . . .
Meu coração grito de desespero sem eco nas cordilheiras da alma;
lareira apagada no inverno de ser . . .
De ser qualquer coisa:
fome de retirante,
sede de flagelado,
ânsia de náufrago,
delírio de bêbado,
angústia da tarde que finda ensangüentada . . .

Oliveira